quinta-feira, 8 de abril de 2010

Import/Export # 38: Decompondo o futebol do FC Barcelona



«As tentativas de explicar porque é que o Barcelona joga tão bem mas mesmo assim ganha têm esbarrado de forma infrutífera com a lógica e a falta de financiamento para a ciência. Há coisa de dois meses, já desesperado, ainda pensei criar uma fundação sem fins lucrativos para os outros que me permitisse alugar por uns dias o Large Hadron Collider, o objectivo sendo fazer colidir jogadores do Barcelona uns contra os outros a velocidades próximas da luz a ver se são constituidos, como predizem as pessoas de bem, por muitos milhares de pedros mendes pequeninos. Dificuldades em convencer o Costinha de que o balneário do Sporting não perderia nada em transformar o universo em multiplos do Pedro Mendes, mesmo que isso implicasse a descoberta de que o Izmailov é, na realidade, constituido por oito príncipes Míchkins pequeninos, um peixe dourado atrasado mental gigante com uma prateleira do Ikea como cérebro, forçou-me a desistir; até hoje, quando peripécias inerentes ao filme Excalibur que está a passar na RTP 2 me forçou à epifania.

Não quero entrar aqui em considerações demasiado técnicas, que seriam forçosamente aborrecidas para a paciência e demasiado complexas para o entendimento, sem contar com o facto de o meu nome completo não ser Homero Cervantes de Shakespeare Stendhal of Proust, a única pessoa que imagino qualificada o suficiente para abordar o tema. Assim, em principio, poder- e, dever-, me-ia limitar a formular a pergunta correcta, que é, como se sabe, cinquenta por cento do caminho para a resolução de um dado mistério: porque é que cada jogador do Barcelona em posse de bola possui, a todo o momento, um mínimo de seis colegas de equipa sem marcação à espera de receber a bola?

A resposta à pergunta não pode ser extraída do visionamento dos mais brilhantes 20 minutos deste ano e um dos melhores pedaços de futebol que vi na vida, os primeiros vinte do Arsenal-Barcelona da semana passada. Isto porque Wenger preparou a sua equipa para a posse de bola, não compreendendo que não tem jogadores nem equipa para competir com o Barcelona nesse campo. Um erro que agora me parece estúpido, mas que antes, quando ouvi Wenger a dizer que pediria aos seus jogadores para jogarem como sempre fizeram, me pareceu muito bem afirmado. Ingenuidade minha, mais uma prova de que o Mourinho percebe mais de futebol que eu.
(...)



Explicar o futebol do Barcelona implica explicar o supérfulo. Jogar tão bonito para apenas ganhar tanto como o Real Madrid, Milão, Juventus ou Liverpool (se chegarem a tanto, o que espero) nas suas melhores épocas parece vaidoso. Mas o génio do Barcelona está em conseguir transformar esse enfeite pesado e potencialmente esclerótico na essência do processo pelo qual se chega à vitória, uma espécie de prova ontológica da ética futebolística do greco-esplendidamente madrileno Jorge Valdano através da sodomização amigável das linhas defensivas dos adversários.

Mesmo no melhor Brasil, o passe nunca deixou de parecer um meandro que retardava a jogada de perigo ou o golo, um favor que os jogadores brasileiros concediam ao espectador antes de colocarem a bola por trás das costas do guarda-redes adversário, dado ser manifesto que qualquer um deles poderia atingir sozinho o lugar onde a equipa chegaria 15 passes depois. O que o Barcelona de Guardiola parece ter conseguido é eliminar essa sensação de que todos aquelas trocas cinematográficas de bola entre os seus jogadores são uma enorme sucessão de macguffins futebolísticos, destinados a aguardar o momento de génio de um génio como o Messi. Tentem imaginar, façam-me esse large hadron collider favor, que o golo do Maradona contra a Inglaterra em 1986 era hoje recordado como uma grande jogada de equipa da Argentina, estão a ver a cena? Não estão? Mas pronto, acreditem em mim, é isso; o Barcelona de Guardiola é essa equipa. O Barcelona de Guardiola é a equipa que faz as jogadas do Messi, do Ibrahimovic, do Xavi, do Iniesta, do Keita ou do maluco do Dani Alves parecerem pontos de um polígono complicado, reluzente e infalível.
(...)

Há coisa de 4 semanas, num jogo que opunha o Barcelona a mais uma equipa institucionalmente obrigada a ser sua adversária, vi o Xavi a trocar 6 vezes a bola com o Keita, ambos sem sair de posição, de primeira, como se tivesse tudo a correr bem; simultaneamente a este excelente espectáculo de futmington, os outros jogadores do Barcelona olhavam impávidos, serenos, parados e sem marcação.
(...)

Qualquer outra equipa do mundo teria entrado em convulsão por fucisse e indecisão operativa do meio-campo, o observador imparcial refilado com a ausência de movimento (vulgarmente confundido com dinamismo), o treinador utilizado o caderninho que eles agora levam todos para o banco e calendarizado uma sessão de treino de tabelas em progressão; contra qualquer outra equipa um adversário deparado com este estado de coisas teria, primeiro, parado para descansar um pouco, segundo, reorganizado, terceiro, colocado um elemento sobre a linha de passe que estava a ser utilizada por forma a inutilizar a comunicação futebolística entre os dois elementos funestos.



Estou convencido (...) que contra o Barcelona nada disto acontece porque Keita, Iniesta, Xavi ou Messi não estão propriamente a transferir a posse de bola entre eles, mas sim a torná-la inútil para a imaginação dos adversários e dos espectadores. Todos os seres humanos necessitam de um tempo de fixação no objecto para a partir dele ser capaz de elaborar um desejo; quando o Barcelona está em posse de bola ninguém tem tempo de desenvolver obsessão suficiente para colocar em prática um instinto, quando mais um plano de jogo previamente treinado, no caso do jogador, ou uma ideia de futebol, no caso do espectador.
(...)

A relação entre o jogador deste Barcelona de Guardiola e a bola faz também lembrar uma tourada tântrica, onde o touro e o toureiro nunca se chegam verdadeiramente a reunir, mas em que todos os envolvidos saem em ombros; isto é, não há bandarilha, não há sangue, apenas uma longa dança em que toureiro e touro acabam por morrer de morte natural, mas num processo não menos estético, não menos digno, não menos ético.

O combate à incompreensão do que é hoje em dia o futebol do Barcelona tem que ser feito ao nivel das ideias. Não é só o Real Madrid ou o Arsenal que são adversários do Barcelona, mas todos nós, pessoas que vêm futebol em casa descansada e inocentemente vai para cem anos, com esta ideia fixa e pelos vistos ultrapassada de que um passe entre dois jogadores seja uma representação da liberdade individual. Já não é. Agora quem manda é a bola. Quando percebermos isto talvez percebamos o futebol do Barcelona.»

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