sexta-feira, 27 de março de 2009

Import/Export # 19: Uma reflexão acerca de lixo by RAP in Visão


"Certo dia, quando trabalhava no JL, fui incumbido de entrevistar uma escritora chamada Adília Lopes. A primeira pergunta que lhe fiz foi sobre um poema seu de que eu gostava e gosto muitíssimo. Chama-se Autobiografia sumária e só tem três versos: «Os meus gatos / gostam de brincar / com as minhas baratas.»
O meu objectivo era impressionar a autora com a minha excelente interpretação do poema. Disse-lhe que aqueles versos eram também o resumo da minha vida. Os meus gatos, isto é, aquilo que em mim é felino, arguto, crítico («Não é por acaso», disse eu, «que Fialho de Almeida reuniu os seus textos críticos num volume chamado Os Gatos»), aquilo que em mim é perspicaz - e até cruel - gosta de brincar com as minha baratas, ou seja, aquilo que em mim é repugnante, negro, rasteiro, vil. E aquela operação poética - que é, igualmente, uma operação humorística - de escarnecer de si próprio era-me tão familiar que podia descrever-me de forma tão competente como à autora do poema.
Os olhos de Adília Lopes humedeceram-se. Fosse qual fosse a noite solitária em que escreveu o poema, estava longe de imaginar que, tanto tempo depois, a sua alma gémea se apresentasse à sua frente, compreendendo-a tão profundamente. Foi então que Adília Lopes falou. Disse o seguinte: «Pois. Bom, comigo, o que se passa é que eu tenho gatos. E tenho também baratas, na cozinha. E os gatos gostam de ir lá brincar com elas.» E depois exemplificou, com as mãos, o gesto que os gatos faziam com as patinhas.
Foi naquele dia, amigo leitor, que eu deixei de me armar em esperto. Tinha citado Fialho de Almeida, tinha usado a expressão «operação poética», e tinha-me visto a mim onde só havia gatos e baratas. Os olhos de Adília Lopes estavam húmidos, provavelmente, do esforço que a sua proprietária fazia para não rir. (...)"

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