sexta-feira, 30 de setembro de 2011

Import/Export # 84: O malfadado (novo) Acordo Ortográfico



"Estou a ficar velho, mas a culpa não é minha. O corpo cria poucos cabelos brancos, ainda menos rugas e quase nenhuma pança, e a mente consegue manter-se imatura sem esforço nenhum. Estou a ficar velho por causa do acordo ortográfico. (...)
O leitor quer saber porque é que este acordo ortográfico é absurdo, do ponto de vista linguístico? Então leia um linguista, que já vários se pronunciaram sobre isso. Comigo não conta para erudição, como sabe. Eu li os linguistas, mas quem me convenceu a ser contra o acordo foi a minha avó - que só tinha a terceira classe. «Ui, vem aí digressão biográfgica», pensa o leitor. «E mete avós pouco instruídas, que acabam sempre por ser as mais sábias», continua, já um tanto impertinentemente. Tenha calma, não é uma enfadonha história de sabedoria anciã. É uma enfadonha história de amor ancião. Nos anos decisivos da minha vida, passei muito tempo em casa da minha avó, que não era, digamos, uma pessoa exuberantemente afectuosa. Não era dada a beijos e abraços. Sucede que, talvez por isso, eu também não sou uma pessoa exuberantemente afectuosa. Também não sou dado a beijos e abraços. Quando quero explicar a uma pessoa que gosto dela, tenho de recorrer a outros estratagemas. A minha avó cozinhava. Ou esperava por mim à janela. Eu digo coisas. Deu-me para isto. Faço tudo o que é importante com palavras, porque não sei fazer doutra maneira. Acho que foi isso que me atraiu na actividade de fazer rir as pessoas: trata-se de provocar uma convulsão física nos outros - mas sem lhes tocar. (...)
[Agora] o leitor também rabujaria se um acordo internacional o obrigasse a abraçar de outra forma ou a beijar de modo diferente. «Recepção» escreve-se com «p» atrás do «ç». É assim porque o «p» provoca uma convulsão no «e» - sem lhe tocar. E eu tenho alguma afeição por quem consegue fazer isso."

by Ricardo Araújo Pereira in "A Boca do Inferno" (revistas Visão), de 29.set.2011.

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