quinta-feira, 21 de fevereiro de 2013

Import/Export # 155: Cus cus

 
«Francisco José Viegas, antigo secretário de Estado da Cultura, disse que, na eventualidade de ser abordado por um desses novos fiscais das facturas, lhe pediria "para ir tomar no cu". O cu entra na política por via da cultura, um canal de prestígio cujo acesso costuma estar barrado ao cu, e a política acolhe com agrado a sensualidade e a volúpia do cu, das quais está sempre muito necessitada.
António Botto, outro escritor que produziu pensamento (e não só: também produziu acção, e muita) sobre o cu, escreveu um poema célebre que começa com o verso "Nunca te foram ao cu". Porém, o que em Botto é lamento nostálgico, em Viegas é esperança e projecto de futuro. Ambos os poetas idealizam um cu, mas Botto lastima que o proprietário do cu que contempla nunca nele tenha tomado, ao passo que Viegas oferece ao titular do cu que imagina um incentivo a que lá tome.
É curioso constatar que há mais poesia no cu de Viegas do que no cu de Botto. O cu em que Viegas manda tomar é um cu simbólico. Trata-se de um cu que é metonímia de outro cu. Viegas não ignora que, acima do cu do fiscal das facturas há outros cus, bastante mais poderosos - e, acima desses, outros cus ainda. Essa hierarquia de cus culmina num cu-mor, responsável último pela ideia da fiscalização de facturas. É esse o cu a que Viegas deseja aplicar a receita que prescreveu. O antigo secretário de Estado está, portanto, a mandar tomar no cu por interposto cu. É um cu labiríntico, aquele que nos é apresentado neste jogo de espelhos de cus.»
 
by Ricardo Araújo Pereira in revista Visão (21.fev.2013)

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